Quem nunca ouviu a tão desagradável pergunta: “Me
empresta esse livro?”
E quem nunca respondeu: “Claaaaaro! Me lembra de pegar!” SÓ QUE NÃO. A falsidade não poderia ser menor do que o cavalo de Troia!
Sabe QUANDO eu vou emprestar esse, aquele ou aquele outro
para você? NUNCA. E não existe discussão.
Fazer a política da boa vizinhança é sempre importante,
mas jamais sem perder aquele tom delicioso de ironia. Da mesma maneira que a
pergunta não passa de uma grande piada, a resposta não poderia ser diferente, não
concordam?
Emprestar um livro é um ritual de sacrifício, com bodes,
chifres de antílopes, sangue daquele que pega o livro emprestado e, claro, o
sacrifício de sua alma imortal. Se tiver algo a oferecer no momento também pode
ser interessante, mas talvez determinados orifícios não sejam lá muito corretos
de mencionar nesse post...
ENFIM, se você deseja um livro emprestado, lembre-se:
1. Marque
uma entrevista para conversar sobre o empréstimo do livro,
2. Tenha
o certificado de qualidade “Pessoa Responsável” e certificado “Pessoa Gentil E
Inteligente Perante Amigos Insanos E Possessivos Com Seus Livros” [favor trazer
durante a sua entrevista de empréstimo de livro; lembrando-se sempre que deve
ser papel de qualidade, timbrado, com assinatura sua e do diretor da
universidade],
3. Tenha
um currículo vasto de experiências no que diz respeito a empréstimo de livros,
4. Pelo
menos três cartas de recomendação de amigos, dos quais você pegou os livros
emprestados [documentos reconhecidos em cartório],
5. Esteja
dentro do meu grupo de “Três Mais Importantes e Fiéis Amigos”,
6.Tenha
um sistema doméstico de segurança contra crianças, animais domésticos, insetos
grotescos ou qualquer criatura viva que possa se aproximar e fazer uma grande
cagada no livro,
7. Tenha
dinheiro [muito dinheiro] para pagar a terapia com um psiquiatra e um
psicanalista que irão acompanhar seu surto psicótico paranoide, após eu ameaça-lo
de morte e amaldiçoar toda a sua família, durante a entrevista, caso algo
aconteça ao livro,
8. Seja
profissional ou, ao menos, pareça profissional [não ache que com essa cara e
atitude de Narcisa Tamborindeguy conseguirá um livro meu emprestado],
9.Caso
não preencher qualquer um dos pré-requisitos acima, sua solicitação será
automaticamente anulada.
Lembrando sempre que, mesmo com todos os pré-requisitos
preenchidos com louvor, você haverá de passar por um treinamento agressivo e árduo
[físico e mental] de treze semanas, além de provas escritas [múltipla escolha e
discursiva] sobre os assuntos:
1. Empréstimo
de livros,
2. Como
se comportar perto, próximo ou com suas patas imundas sobre o meu livro querido
do coração,
3. Higiene
e cuidados com livros,
4. Proteção
nuclear contra todos os tipos de seres vivos [inclusive você] em um raio de
quinze metros com relação ao livro emprestado,
5. Relações
Internacionais com livros,
6. Relação
ser humano-livro,
7. Relação
afetiva com livros [capa dura, capa mole, livro de bolso com papel de jornal,
etc],
8. Psicanálise
comportamental das relações de respeito e consideração com os livros alheios e
com o emprestador.
As provas escritas, treinamento e entrevista contabilizam
100 pontos e devem preencher, no mínimo, 100% da pontuação. Após as avaliações,
aguarde até que seja entrado em contato para elucidação de seu resultado. Caso não
seja contatado, bem... já sabe.
Boa sorte. O problema é só seu.
~~ * ~~
Empréstimo
de Livro
Contos de Lulu II
E, então, ele estava sentado, distraído, perdido em seu próprio
mundo. Não era de se estranhar. Não poderia ser diferente.
Imerso naquelas páginas, naquelas palavras, cada sopro de
invenção era uma gota mais de imortalidade. Sentia-se poderoso, único e capaz
de qualquer coisa. A ansiedade aumentava conforme as folhas eram viradas, a
cada segundo desejando por mais e mais.
Ah, o virar das páginas... Um prazer inenarrável e único;
insubstituível.
Era uma sensação fantástica de plenitude. Não havia nada
que pudesse substituí-la. Não havia nada que pudesse ser tão atraente e ardiloso
como um livro.
Perdido em cada parágrafo, deixara-se jogado sobre a
poltrona giratória de couro atrás da mesa. Os pés sobre o assento, o corpo
jogado para trás, com a cabeça recostada na maciez do móvel. Era a posição perfeita
para que se perdesse.
A biblioteca não era das maiores, porém bastava ser
aconchegante. Ainda que pudesse ter tudo o que desejava, um simples canto era o
suficiente para que seu corpo sentisse o conforto de estar ali.
Nada poderia incomodá-lo; nada poderia atrapalhar o seu
momento. Era o seu momento.
E, então, ela adentrou. Mais linda do que nunca. Apesar
de não ter levantado os olhos para ela, tinha consciência de que nada teria
mudado.
Os cabelos negros e longos escorriam como uma cascata por
suas costas, ombros e seios, beirando sua cintura como se fosse beijá-la. O carpete
abafava o som de seus saltos finos, ainda que não pudesse impedir o delicado
balançar da cintura fina. Era perfeita e única para ele, ainda que não
estivesse lhe oferecendo toda a atenção no momento.
Tinha plena consciência de que, eventualmente, ele a
tiraria do sério; tiraria de seu estado lentificado e tomaria toda a sua atenção...
Ainda não era o caso, todavia.
Ela caminhava de um lado ao outro da biblioteca,
observando as estantes carregadas de livros, como se procurasse algo, uma
esperança de vida nova naquelas capas novas e antigas. E, por fim, tirou um da
prateleira. Os olhos azuis encheram-se com as inscrições de alto relevo, em
ouro: ‘O Conde de Monte Cristo’, Alexandre Dumas.
Com uma inspiração prologada, Lilith tornou o seu corpo
em direção a ele, aproximando-se de sua mesa e de sua paz. De alguma forma ela
iria invadi-la e ele esperava por isso; até ansiava por tal.
Com todo o charme e delicadeza, afastando os lábios rubros
um do outro, sorriu a ele e se permitiu pronunciar o que tanto desejava havia
algumas semanas:
“Vou pegar esse livro, tá?” Disse ela, cheia de sorrisos
no rosto, dando pequenos pulos de felicidade.
A trilha sonora fantástica em sua cabeça arranhou como um
disco brutalmente abandonado por sua agulha e o rosto se ergueu. Os olhos
arregalaram-se, embasbacado com tal pergunta, e não havia mais nada a fazer,
que responder à altura do que lhe fora questionado.
“CUMÉ QUI É?!”
“Me empresta, homi! É rapidinho! Eu devolvo em dois dias!”
Ele ergueu uma sobrancelha e mostrou a cadeira do outro
lado da mesa.
“Senta aí, filhinha...”
“Filhinha?” E foi a vez dela erguer uma sobrancelha,
ainda que não tivesse se negado a sentar.
Marcando-o com todo o cuidado e amor, Lulu fechou seu
livro e o colocou sobre a mesa, ao seu lado, logo apontando sobre ele, para que
pudesse chamar a atenção de Lilith.
“O que é isso?” Foi a sua vez de perguntar em um tom
leve.
“Um livro.” Respondeu, como se fosse algo óbvio.
“Não. Isso é um pedaço de uma coisa linda de meu Deusu.”
Disse ele, observando o livro com um suspiro e felicidade nos olhos.
“... De quem?” Ela tornou a erguer a sobrancelha, fazendo
conjunto à sua cara tão adorável e característica de bunda.
“Uma fagulha de prazer!” E ele colocou as mãos no peito,
entoando sua alegria com os olhos fechados. “Um ponto de esperança em um buraco
negro!”
“... Você tá bem?”
“Estou ótimo!” Disse, saindo de seu transe.
“Então, vai emprestar?”
“O que?”
“O livro!”
“Depende...”
“Do que?”
“Das suas intenções para com o meu filhinho.”
“OI?!”
“Quais são os termos?”
“Que termos?!” E ela foi ficando nervosa.
“Termos de compromisso, é claro!”
“... Você precisa de um termo de compromisso para me
emprestar um livro?”
“Preciso. Como vou saber se você cuidará bem ele? Como
vou saber que não fará orelhas?” E se encolheu todo. “Ai... orelhas...” Chegou
até a coçar os braços, de tanto nervoso.
“Eu não farei orelhas nas páginas, Lúcifer!” Reclamou. “É
só um livro!”
“Não, não, não! Não é só um livro! É um pedaço do céu de
meu Deusu!”
“... É, você já disse.” E revirou os olhos, sem paciência,
cruzando os braços.
“Não faça essa cara! Isso denota o tipo de
comprometimento que você tem para com a nossa relação! Para com ele! Isso é um
descaso, um absurdo, uma falta de consideração com Alexandre Dumas!” Disse ele,
em tom de ofensa.
“Eu tenho consideração! Vou cuidar bem do seu livro!”
“Mas como vou saber que você vai cuidar bem dele?”
“Como vai saber que não vou cuidar bem dele?!”
“Da mesma maneira que não tem como você saber se eu
cuidaria bem de um livro seu!”
“Se você não souber de que forma eu cuidarei do seu
livro, eu direi a forma que estiver cuidado do seu livro, embalando como um
bebê no berço!”
“Mas depende...”
“Do que, caceta?!”
“Dos termos!”
“Que termos?!”
“Ahhhh...” Ele sorriu. “Entããããão...” E abriu uma gaveta na
mesa, vasculhando rapidamente, e retirando um bolo de papeis grampeados,
estendendo a ela. “Toma.”
“O que é isso?” Perguntou, tomando os papeis nas mãos e
olhando.
“É um pequeno contrato para você ler. ‘Termos de
compromisso’.”
“Vinte e quatro folhas?!”
“Frente e verso! É pouca coisa, vai!”
“AHN?! E o que eu faço com isso?!”
“Você lê e assina!”
“Só isso?!”
“Assina, vai no cartório e reconhece firma, coloca em
três vias, ficando uma com você, uma comigo e com o cartório. A minha via é a
azul, por favor!”
“...”
“Ah! Se for mandar alguém trazer por você o termo
assinado, não esquece de reconhecer em cartório também, afinal, como vou saber
se é verdade?”
“... Oi?” Disse ela baixinho, com os olhos entreabertos e
sonolentos.
“Ah, outra coisa!”
“Tem mais?!”
“Só mais uminha!” Fez ele um bico e um gesto com a mão de
que era algo pequeno.
"... O que?”
“Preciso de um adiantamento.”
“Que adiantamento?!”
“Para pagar o matador, é claro, caso não devolva o
livro no prazo máximo de uma semana! Ou você achou que eu quem iria pagar?!”
Revirou os olhos. “Que ideia...”
Hahahaha muito bom!! Importantíssimos os certificados de qualidade "Pessoa Responsável" e "Pessoa Gentil e Inteligente Perante Amigos Insanos e Possessivos com seus Livros", assim como ter o currículo vasto de experiências no que diz respeito a empréstimo de livros. XDD
ResponderExcluirE Lulu? Hahahaha maravilhoso como sempre!!!
top ficou
ResponderExcluirlegal
Muito forçado,não me inpressiona
ResponderExcluirConfesso que não empresto meus livros para algumas pessoas, nem com o "Termo de Compromisso" assinado em três vias e registrado no cartório rsrsrs. Dou as desculpas mais esfarrapadas rsrs. Adorei o texto!
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